quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Na Memória (ou in Memoriam)

Eu costumava inventar finais felizes. Foi assim que aprendi a viver, a jogar fora aquilo que me deixava triste, e sorrir na frente de todo mundo. Já havia entendido a diferença entre aquilo que eu sei e aquilo que as pessoas acham que eu sei, e lidava com naturalidade com isso, mesmo sabendo que isso também incluía a visão que as pessoas de fora tinham da minha própria vida.
E talvez esse blog tenha sido o maior exemplo disso.
Muito daquilo que contei aqui aconteceu, mas de forma romantizada. Hoje vou contar uma verdade.
Em setembro de 2012 uma moça chamada Leila Romano, com quem eu tinha um contrato, foi para os EUA morar com o pai. O contrato era de nos tornarmos pessoas melhores, de usarmos o fato de sermos tão diferentes, e sermos completos juntos. Essa era a ideia. Um mês depois, em novembro do mesmo ano, eu soube que ela não voltaria tão cedo, e que seis meses de pausa entre nossos projetos pessoais ficariam entre nosso projeto conjunto. O amor, nesse caso, não era suficiente para frear nossa aceleração, e entre nossos dedos, escapavam o céu azul, e as conversas na grama da UFV. Mas esperar é uma das artes de viver, não é verdade? Foi nessa época em que eu postei Avalon, que falava sobre a mulher da minha vida se casando com outro cara. O casamento era da minha irmã, mais a mulher da minha vida não havia se casado, apenas estava longe.
As postagens desse blog podem não ser a verdade sobre os acontecimentos da minha vida. Eu me agarrava ao que estava acontecendo, misturava em um liquidificador de sorrisos e lágrimas, e escrevia o resultado. Eu costumava inventar finais felizes. Pelo menos até março de 2013, quase seis meses depois dela ter partido, quando comecei as minhas 127 horas. A ideia, originalmente, era contar o quanto a minha reclusão, por causa de um problema na boca, tinha me afetado na semana seguinte ao meu aniversário. No meio do caminho, já em abril, alguma coisa aconteceu, e a segunda parte daquela postagem mudou.
Eu realmente tinha um vizinha que sofria do mal de Alzheimer, mas ela não era uma filósofa, nem se importava realmente com o que acontecia na minha rua. Ela já estava nos estágios mais avançados da doença, e só ficava na cama. Eu devo ter conversado com ela uma vez, muito rápido, e depois mais nada.
A verdadeira história, que inspirou as 127 horas, é essa:
Era terça-feira, 23 de abril de 2013, e eu terminava de dar os retoques na minha dissertação de mestrado. Muitos gráficos a serem feitos, muitos dados ainda para serem analisados. Leila voltaria ao Brasil em um mês, e com isso eu estava animado. Ela sempre me dizia que eu não era um bom Físico, e que eu devia tentar algo diferente, algo maior. Eu ouvia, mas não acreditava. Ela era a filósofa, era com ela que eu conversava sobre as coisas do mundo, ela era minha psicóloga.
Eram uma hora e trinta e sete minutos da tarde. Eu nunca vou esquecer esse horário. Meu celular toca, e é a mãe da Leila. Um acontecimento irremediável, selado no tempo, havia se desenvolvido na noite anterior, e tornaria nosso reencontro impossível. Ela não havia se casado com outro cara, e a velhinha com Alzheimer, acreditem ou não, está viva até hoje. Leila Romano não.
Acidente de carro. Motorista bêbado. Uma morte comum para uma pessoa incomum, e eu não bebo desde então. Visitei sua cidade natal, Três Corações, no dia seguinte, e me perdoem se não quiser contar os detalhes dessa viagem. Levei pra lá muita coisa, e muita coisa não retornou.
Sofri sozinho muito tempo, como já estava acostumado, e de lá pra cá, sempre ressoa na minha cabeça aquela última frase que ela me deixou. "O mundo te criou pra ser assim, distante, então não tenha medo". E lembrando do fato de ela nunca acreditar que eu seria um bom Físico, eu não sei como eu consegui defender meu mestrado, e nem sei como consigo seguir em frente, todos os dias. Eu nem sei se aguento mais.
De lá pra cá, tudo o que eu penso é no que ela queria dizer com "algo maior", e todo dia, às uma e trinta e sete da tarde, minha garganta fica seca, e eu faço um minutinho de silêncio, como um presente final que eu nunca entregarei. Eu não sou supersticioso, só gostava realmente muito dela.
Com uma morte esse blog começou, acho que com outra deve terminar, ainda que atrasada, ainda que pra deixar uma lição final. Agora eu tenho um outro mundo, e me tornei uma pessoa melhor, sem sequer perceber.
Obrigado, Leila. Obrigado, amigos.
Tchau.


sábado, 3 de maio de 2014

Estar Certo

"- Como você sabe que está certo toda hora? E se você estiver errado sobre o julgamento que faz das pessoas?
- Lembra do tal do Skinner?
- Que Skinner?
- O cara do rato. Tentando entender o aprendizado, ele botou um rato numa gaiola, com dois botões. Um botão trazia comida, o outro dava um choque no rato. Para todos os efeitos, havia o botão certo, e o botão errado. Depois de um tempo, o rato só apertava o botão da comida, não porque a comida era boa - era só queijo - mas porque o choque doía. Comigo é a mesma coisa, sempre que eu estive errado sobre alguém, doeu. Sempre que eu me enganava, eu era imediatamente punido. Após todos esses anos, eu sei que estou certo, apenas por não estar errado. Apenas por não doer."

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

De: Rafael, Para: William Lourenço

"O momento em que você percebe que é a única pessoa capaz de te ajudar é o momento em que sua fé na humanidade termina. Você deixa de precisar dela."

In: A Barca.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

A Fé Cega

Se eu fumasse, aquele seria o momento de acender um cigarro. Do lado de fora da porta, olhando de longe o Estádio Independência, nenhuma nuvem no céu.
Nos últimos meses tenho feito coisas que ninguém esperava. Praticamente "larguei" meu mestrado na UFV (ainda terminando), saí de Viçosa, não vou à minha cidade natal há alguns meses, tenho vivido na mais absoluta "procrastinação". Como Físico, eu sei que na natureza, quando um fenômeno acontece, ele continua acontecendo a menos que aquilo que o originou deixe de existir. Naquele momento, do lado de fora da minha nova casa, a origem do meu fenômeno voltou a mim: você não pode ser aquilo que quer sendo igual a todo mundo. A minha escolha foi, na verdade, muito simples. A cada palestra que eu ia, a cada pesquisa que eu fazia, eu sabia que 1% da população humana saberia do que eu estava falando. Na Física, assim como na vida, quanto mais você sabe, mais sozinho você é.
Eu não nasci pra ser assim. Eu não quero usar minha inteligência pra ajudar 1%. Isso é besteira. Ao invés disso, resolvi trilhar um novo caminho, pra tentar ser alguém realmente importante: um caminho diferente.
Ainda não sei como a história vai terminar, ou se eu vou conseguir ser alguém, a partir das escolhas que fiz, ou dos riscos que assumi, mas eu já deixei de me preocupar com isso há muito tempo. A nova guerra e a nova paz estão apenas começando.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

O Inverno

Fez frio quase todo dia.
Durante seis meses, as blusas saíram do armário. Durante seis meses, o Sol insistia em não aparecer. Nesse inverno eu perdi a noção dos dias. Não sabia se era segunda feira, se já era o fim do mês, se já eram três da tarde... Meu relógio biológico funcionava em um ciclo de trinta horas: vinte acordado, dez dormindo. Isso significava que, em algumas ocasiões, eu ia dormir às quatro da tarde, e acordava às seis da manhã.
Num desses dias eu acordei às seis, fiz café, e ninguém na minha casa tinha acordado. Ninguém existia na minha casa. Eu abri a porta da frente, sentei no banco da varanda, e entre as árvores do outro lado da rua, vi o Sol nascendo, devagar, como há muito tempo não fazia. E uma música começou a tocar na minha cabeça, uma que dizia "o exílio tomou conta da sua cabeça, novamente.". Com a caneca de café na mão, sentado num banco, no mês de agosto.
Eu sabia, naquele dia, que algo precisava mudar. Estar sozinho parou de me fazer bem, e começou a me fazer mal. A sorte dos tolos que me enviou para o exílio tinha acabado. Com um telefonema, com uma passagem de ônibus, com uma mochila nas costas, o exílio acabou. Só voltei lá pra buscar o resto das coisas.
A caneca suja de café ficou na pia.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Minhas 127 Horas (Parte Final)

Medo. Eu recebi a última lição sobre medo naquela tarde. 126 horas de rosto inchado, preso em isolamento do mundo. A vizinha tinha sofrido um derrame cerebral, e nós dois estavamos naquele quarto por motivos diferentes, mas não totalmente diferentes. Ela não podia sair de qualquer jeito, e eu não tinha que trabalhar por causa do inchaço. Não havia nada que eu precisasse fazer em casa, então decidi ficar ali, ao lado daquela cama, por mais um tempo.
"Ela leu seu blog, sabia?", a filha me disse. Não vou entrar em detalhes de como ela achou esse espaço, só digo que tem algo a ver com A Síndrome do Gênio. O mais interessante foi saber que ela era uma psicóloga. Alguém que consertou a mente de tanta gente, agora foi traída pela sua própria.
A próxima hora de lucidez começou com ela me dizendo que eu tenho tanto medo. Eu não sei, mas talvez ela tenha razão. Eu já perdi tanta coisa que agora eu tenho medo, e até aquele momento, eu não tinha certeza de que. Acho que no fim da vida a gente vê tudo mais claro, mesmo quando não se sabe de tudo, mesmo quando se tem Alzheimer.
Depois que a mulher da minha vida se casou com outro cara, eu vivia com medo de nunca mais encontrar alguém como ela. Naquela tarde, eu descobri que não era esse o meu verdadeiro medo. O meu medo era de encontrar, e não estar pronto. Mas, 127 horas depois do meu vigésimo sexto aniversário, eu aprendi o que era necessário pra estar pronto, pra tentar esquecer o medo. 127 horas depois, passei a mão pelo meu rosto e percebi que o inchaço tinha finalmente desaparecido.
Ali, enquanto os enfermeiros a preparavam para a volta ao hospital, e visto que nenhum deles me perguntou sobre o meu rosto, o quasimodo recebeu uma redenção final.
"O mundo te criou pra ser assim, distante, então não tenha medo."
Aquelas foram as últimas palavras, as que ficaram. Aquela voz se calou pra sempre, três horas depois. Mais uma alma se juntava ao meu bom amigo Weaver, e me obrigava a viver por ela. Já aprendi a me despedir das pessoas.
E acho que não tenho mais medo.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Minhas 127 Horas (Parte 2)

Parte 1 aqui.
Lá estava eu. Preso em casa, com o rosto inchado. Recomendações do dentista.
Quando se está enclausurado em algum lugar, muitas vezes é a nossa chance de conhecê-lo melhor. Já me ensinaram uma vez que você nunca conhece um lugar totalmente. Sempre há uma mancha no chão, um arranhão na geladeira, alguma coisa que você não sabe de onde veio. E assim eu perambulei pela casa onde morava há seis anos, perdido.
Era fim de tarde, na quarta-feira, a primeira vez que saí na varanda, com o rosto ainda inchado. Um pouco abaixo na rua, a filha da minha vizinha varria a calçada. A mulher de uns trinta e poucos me olhou por uns segundos, acenou, e eu evitei virar o rosto pra não assustá-la. Ela provavelmente ficaria preocupada, me perguntaria o que tinha acontecido, e eu teria que explicar pra ela o que já tinha explicado para o dentista. Eu achava melhor que fosse assim. As coisas que eu digo e que eu faço devem sempre devem ter mais importância do que aquilo com que eu me pareço.
O rapaz, que havia feito seus vinte e seis anos há apenas alguns dias, queria voltar ao mundo, queria experimentar a vida. O quasimodo, sentado na varanda, queria viajar pelas praças de Paris.
Nesse momento uma vassoura vai ao chão, e a moça que antes varria a rua entra correndo na casa.
Nesse momento o quasimodo esqueceu de seu pequeno defeito, e como nunca tinha acontecido antes, se preocupava com o que tinha acontecido.
Ele deixa o conforto de sua varanda e entra na casa ao lado pela primeira vez.